sexta-feira, 16 de março de 2012

AS RECONSTRUÇÕES DE TÔMAZ
Ficção literária de Geraldo J. Costa Jr.


“E não enfraceu na fé”
Romanos 9:14
  
O primeiro passo além do portão de Cerberus

Sim, eu matei. Como fui capaz, é pergunta que nunca me fiz. De repente, havia no asfalto um rosto chamuscado de pólvora, embebido de sangue, deformado. Mais que um rosto, um corpo. Mais do que um corpo, uma vida que exalava seu último suspiro.
A fumaça ainda saía do cano do revólver e antes de guardá-lo na cintura pensei girá-lo nos dedos...

  
CAPÍTULO 1.
Era um sábado qualquer e fazia muito frio. Os bolsos da jaqueta aqueciam as mãos. Mas, devo admitir, faziam um trabalho melhor antes que eu os rasgasse com as minhas unhas cumpridas e sujas.
Algum tempo depois, trancado no quarto, revejo minha coleção de igrejas góticas. São recortes de jornais e revistas, cartões postais adquiridos em sebos. Retorno àqueles dias, quando vejo essa minha coleção. Ninguém sabe que a tenho. Quer dizer, meu pai não sabe, minha mãe não sabe, nem meus irmãos.
Os primeiros pingos da chuva batem na vidraça da janela. Deixo de lado as igrejas góticas, porque a chuva me interessa muito mais.
Eu admiro a chuva. A chuva forte, de granizo. Desde que morávamos no interior naquela maldita cidade que me recuso a dizer o nome, sempre foi assim. Pobre, pirralho e indefeso, eu vivia apanhando de minha mãe, porque ela detestava me ver no quintal, feito idiota, tomando chuva.
Acho que vou descer. Quem sabe encontro na cozinha algo pra matar a fome.
Enquanto desço a escada, ouço meus irmãos discutindo. Por causa de comida, é claro. Três horas da tarde, meu irmão diz que sequer almoçou ainda, e minha irmã responde que pouco se importa com isso.
Vejo o meu pai, sentado à mesa, quase enfiando a cara no prato, apoiando com os cotovelos o peso dos quase cem quilos que seu esqueleto, comido pela ostorporose, tem de sustentar. Calmamente, ele passa margarina na bolacha de maizena, alheio a discussão de Fabricio e Rosângela, meus queridos irmãos.
Eu me aproximo de meu pai, tentando controlar os nervos e manter a tranqüilidade tanto quanto ele.
“Pai ?”
Então, ele se volta para mim.
“Tudo bem ?”.
Coloca o pedaço de pão sobre a mesa, e volta a me olhar.
“Tudo bem ? – devolve a pergunta – Sim. - e olhando à sua volta – Está tudo bem”.
Meus irmãos, finalmente, se dão conta da minha presença, mas não é para mim que olham.
Meu pai está embriagado, embora faça tremendo esforço por não demonstrar.
Minha irmã, ao perceber a situação do Seu Atílio, resmunga: “Puta que pariu ! Não suporto mais isso!” - e se retira da mesa.
Fabricio é mais discreto. Tem a mesma atitude de Rosangela, mas o faz em silêncio.
Fico bastante tempo olhando para meu pai, esperando que diga alguma coisa, mesmo sabendo que seria uma espera inútil.
Vencido pelo cansaço, puxo uma cadeira, e sento-me ao seu lado.
Seu Atílio, como os vizinhos o chamam, é um homem amargurado. Parece ter raiva da vida. Talvez, muito mais, de si mesmo. Por isso, bebe. E bebe muito, quando encontra motivos para tanto. E motivos parece não lhes faltar.
É também prisoneiro das lembranças. Tem por hábito celebrar seus antepassados ouvindo músicas italianas desde antigos compositores como Rossini, até os ídolos contemporâneos como os intérpretes Bocelli e Pavarotti. Algo que minha mãe repudia como coisa do demônio, desde que se tornara evangélica.
Italianada fajuta esses amigos, parentes e antepassados de meu pai, penso, porque preferem cerveja a vinho toda vez quer tomam de seu corpo para entornar uns goles, porque segundo a minha mãe, é o que acontece nos momentos apoteóticos de meu pai, conforme, é claro, o que disse o pastor.
De modo que todo mundo se acha no direito de dizer alguma coisa a respeito da vida insana de meu pai. Mas ele parece não se importar nenhum pouco com isso.
Bem, como diria Rosangela, minha irmã: Isto não é problema meu.
Os olhos de meu pai são muito bonitos: verdes e expressivos, mas vivem avermelhados, por razões óbvias. Entretanto, ultimamente, não são apenas seus olhos que ficam vermelhos, mas todo o seu corpo, que, às vezes, parece que meu pai fora picado por uma nuvem de abelhas africanas.
Súbito, ele me encara daquele modo habitual, como quem parece estar vendo fantasma. Aponta para mim, e diz:
“Você está ferrado na vida, garoto. Nenhuma chance. Nenhuma”.
Poderia lhe dar a mesma resposta de sempre: “Estou me dedicando mais aos estudos, pai”. Mas o seu olhar indiferente me desanima a fazê-lo.
Espero até que diga novamente.
“Suave é a noite, garoto. Sua mama foi embora. De novo. E acho que desta vez não volta".
De início, não acredito. É apenas mais uma de suas bravatas, estou convencido. Afinal, era muito difícil meu pai conversar a sério conosco, sobretudo, naquelas condições.
Mas quando vejo uma lágrima escorrer de seus olhos, percebo que, ao menos dessa vez, acho que estou enganado.
“Não me pergunta por quê”. - ele diz.
Prefiro encará-lo e demoro a responder. Mas quando o faço...
“Não. Não preciso. Não é mesmo ?”.
Objetivamente ele me responde, com o seu olhar derrotado e o seu silêncio.
“O que pretende fazer ?” - indaga, mexendo a colherzinha de café sobre a mesa.
E ao invés de palavras, continuamos nos falando com os olhos, até que me dou por vencido e resolvo a recorrer às palavras.
“Nada. Não pretendo fazer nada".
"Mas é sua mãe !".
"Sim. Mas antes de ser minha mãe, já era sua esposa".
“Certo. – a resposta pareceu surpreendê-lo. Mas logo ele pareceu se lembrar com certa decepção estampada no seu olhar, que, naqueles dias nada do que eu fizesse poderia surpreendê-lo. Então continuou exatamente do ponto onde havia parado: Certo... Mas, imagine-se como um homem de 54 anos, desempregado e abandonado pela esposa.  – Olhou-me com aquela cara de “sim, agora eu lhe peguei”, e terminou: O que faria no meu lugar. ?”.
Pensei um pouco antes de mencionar uma resposta porque em se tratando de meu pai, todo cuidado era pouco com as palavras:
“Bom... Quer saber mesmo ?
Ele me olha apreensivo. E depois disso, foi como se a velha televisão lá de casa tivesse saído do ar.  Porque não vi e nem me lembro de mais nada.
Acordei já era noite. Estava sozinho em casa. Passei a mão pela boca – ainda dolorida – e, muito contrariado, acusei um hematoma. O soco de meu pai me acertara em cheio. Percebi também, com alguma satisfação, que ele ainda amava minha mãe. Mas como era um ignorante, um estúpido, a havia perdido novamente, e creio, de modo definitivo. E pra ser sincero, embora eu tivesse afeição por meu pai, bem feito pra ele. Bem feito mesmo. Porque não se despreza um amor. Pode-se não retribuí-lo, ignorá-lo nunca.
Eu, falando de amor. É pra rir mesmo. Na verdade, não foi a minha fé, não foi uma sublime inspiração, uma estrada de Damasco, nada disso, não foi nada disso que me fez compreender essas coisas, foi, isto sim, toda vez que vi minha mãe chorando, não por ela, por meu pai. Toda vez que a vi levantando-se no meio da noite, pra fazer um chá de boldo para o Seu Atílio, para limpar a sujeira e a fedentina do banheiro; toda vez que tive de ajudá-la a  levantá-lo do chão e pô-lo na cama para dormir, ou ainda, banhá-lo. Cada vez que vi minha mãe chorando, de raiva, às escondidas, quando o dono de um bar qualquer vinha ao portão de nossa casa para cobrar a conta que meu pai não pagara. Cem, duzentos, trezentos reais, às vezes, todo um salário, enfiados no ralo da vida por causa de bebida e mais bebida. Eu cresci vendo o meu pai beber. Porque não tinha emprego, porque morava de aluguel. Porque o seu salário não durava trinta dias. Tudo balela. Não havia um motivo para que ele bebesse. Havia todos os motivos. Ele bebia porque gostava, porque queria beber.
Meu irmão, Fabrício, certa vez, disse-lhe algo que jamais esqueci: “Pai, não depende de nós, depende de você. Apenas de você”. Ou seja: “Pai, não adianta a mãe ficar fazendo simpatia e promessa pra Deus e o diabo, e você prometendo que agora vai. Tem que ter atitude. A escolha é sua. Mas a sua escolha atinge a todos nesta casa, porque somos uma família. Sim, pai, ainda somos. Ainda somos uma família”.
Somos uma família. Éramos uma família. Somos. Éramos. Somos... Somos?
Deitado no chão da cozinha, eu sabia que meu irmão fora trabalhar, e minha irmã, bem... Mas não sabia de minha mãe, muito menos de meu pai, embora eu tivesse a certeza de que, este último, não tardaria a vê-lo, com aquela cara emburrada de sempre, sentado à mesa da cozinha, pensando na vida, ou, onde pudesse arrumar uns trocados para comprar um maço de cigarros e tomar uns goles.


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